sábado, 8 de outubro de 2016

O RUIR DO CESTO DA GÁVEA

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Sergei Aparin, Arm-char for the poet
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No início havia um poço. Fundo, muito fundo, por onde começaram a despontar, por acção da luz, muitos embriões duma coisa nova. Eram energia em estado bruto, eram matéria por eclodir. Debatiam-se por espaço, no instinto da sobrevivência, em constante embate, sem toque a rebate, e só os mais fortes chegavam ao cimo, supremo apelo, sem contraditório, de algo por descobrir. 
Os que chegaram, e apesar do espaço abundante, continuaram a batalhar. Acordar, no dia seguinte, implicava sempre tolher os passos a alguém.
As células continuaram a multiplicar-se. E, no esplendor da luz, alguns aprenderam a partilhar. Perceberam que, dessa forma, teriam mais a ganhar. Mas havia sempre um, mais célere, que teimava em se evidenciar. Estava-lhes no sangue. 
Na forma, com o passar dos tempos, tudo se pareceu aperfeiçoar, mas no conteúdo, ah, no conteúdo, o embrião teimava em não se metamorfosear. Para um qualquer visitante, a vida, neste mundo, era uma entidade insinuante, plena de cores e mistérios. Em breve, previam eles, seria igualdade de enaltecer, nada a poderia deter. Assim o transpareciam as luzes, cada vez mais intensas, assim o asseguravam as mensagens, cada vez mais sofisticadas. E comungadas.
O passar dos anos, contudo, trouxe novos esboços. Por entre o toque do despertar, cada vez mais cedo, e o regresso para o descanso, cada vez mais tarde, começaram a acontecer, por mais discretas, algumas falhas de luz. O sistema, ainda que atento, não impedia que, aqui e ali, surgissem perguntas, pequenas contestações, que com o tempo ganharam consistência. Eram uma minoria, lá isso eram, mas nunca se sabe o efeito dum possível contágio. E as medidas, em prol da segurança, não tardaram.
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Os aviões sobrevoam os ares, vemos passar as estrelas cadentes, o nosso quintal continua repleto de pequenas comodidades. Contudo, mesmo ao nosso lado, prestes a substituir a realidade virtual, o exército de deserdados, em sentido crescente, é cada vez mais real.
Pensamos que sabemos mais, mas estamos cada vez mais sós. Inquietante é a sensação de que, para lá da névoa, seres sem rosto riem, hienideamente, de nós.
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27 comentários:

  1. ✿゚ه° ·.
    Realidade nua e crua!...

    Bom fim de semana!
    Beijinhos.✿゚ه

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  2. Gostava de ter tempo, um dia, de me sentar ao pé do AC para partilhar minhas leituras de seus textos... e ver se se tocam em algum ponto com aquilo que o inspirou a escrever... rs.
    Sei que grande parte da magia da literatura é justamente a abertura que possibilita, aos leitores, de realizarem a própria leitura que nasce carregada das próprias vivências pessoais... mas não deixo de imaginar a essência, o germe através do qual tudo começou...

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  3. Muitos verbos e advérbios passaram por minha mente enquanto li o seu intrincado texto... destacou-se a sensação da insegurança da História
    um abraço

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  4. Estamos cada vez mais sós, este é o resumo do dia a dia das pessoas e mesmo as que pensam que não acabam por chegar a essa conclusão no dia em que perderem a competição. O nosso dia a dia é uma competição constante e os valores deixaram de ter qualquer significado.
    Beijinhos

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  5. Meu caro AC, não troco a vida real, por muito que insossa possa ser aos olhos dos outros, pela virtualidade, por muito "fabulástica" que seja.
    No meu mundo, do tamanho de uma ervilha, existem dois planos paralelos. Um, no qual habito, o outro, no qual invento e vivo o sonho.
    Vivo numa vida citadina e agitada, mas se pudesse trocava por uma vida mais pacata e mais rural. Não se pode ter tudo. A minha vida resultou das minhas escolhas...Os sonhos permitem-me aliviar o peso da carga diária.
    Quanto à maledicência da gente alheia, passa-me ao lado, nem me de dou ao trabalho de identificar o nome dos dedos cínicos e apontadores.
    Fica um beijo com estima e amizade.

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  6. Não sei se para lá da névoa que nos impede de ver o infinito, existe um ser todo poderoso, mas que nos deu o livre arbítrio de vivermos e procedermos ao sabor dos ensinamentos que se foram transmitindo ao longo dos tempos.
    Nesse processo, muito se perdeu e o homem pensou que evoluindo ganhava, mas na realidade, perdia.
    À medida que a ciência avança a condição primordial do ser humano, que a meu ver seria a união e a concórdia, a entreajuda e o viver em comunidade, produzindo em conjunto e repartindo em igualdade, foi-se desvanecendo e começaram a emergir novas e egoístas formas de viver. Cada um por si, até que a solidão tomou conta da vida das maiorias. Dos que vivem nas torres de betão e ninguém conhece ninguém. Até ao dia em que se olha para o lado e não vemos ninguém. Estamos sós, sem família e sem amigos chegados. Então recorremos ao mundo imenso que se abre frente aos nossos olhos, e, sem sentir quem nos toque e abrace de verdade, vamos sonhando como se fossemos personagens de um romance em que todos desejamos o papel principal, que termina sempre na constatação de uma felicidade inexistente...

    Beijinho, A.C.

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  7. Pois o tempo gargalha de nós enquanto esperniamos do outro lado e olha que ele continua. Sei exatamente como é acreditar demais em algo que só pode ser sonhado - é Bayer a cara na porta. Pois tal sensibilidade só pode ser vivenciada às vezes através da arte. Beijo

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  8. Venho fazer prova de vida. Apesar de andar às aranhas a ver se chego ao bordo do poço, exausto e sem ânimo para mais considerações.
    Hei de voltar pois gosto da qualidade e subtileza dos textos.
    Um abraço (não apertado, que o ripado foi serrado).

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  9. Será que não somos nós que fazemos o nosso tempo? O tempo urge, mas há que se otimizar nossas horas...
    Um beijo e boa semana

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  10. Li e reli este retrato fiel dos dias de hoje. Assustador mas muito verdadeiro. Estamos de facto cada vez mais sós nos nossos quintais...
    Abraço AC

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  11. Uma solidão que tem tendencia a aumentar. Eu troco pc e iphones por uma mesa com os amigos e uma garrafa de vinho, por uma caminhada olhando a natureza, esta é uma das razões que não estou muito presente na blogosfera, apenas um pouquinho à noite.

    Boa semana meu amigo AC.

    Um beijinho

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  12. Curioso...

    ...passei o fim de semana a pensar um pouco naquilo que penso ser a temática deste texto...

    Muito bom.

    :)

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  13. Uma realidade virtual? É cada vez mais a realidade que vamos tendo e, como diz, estamos cada vez mais sós... Um texto para tornar a ler e pensar.
    Uma boa semana.
    Beijos.

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  14. Texto difícil de tatear...e isso o que o torna tão singular!

    Consegui pensar em tantas coisas... engraçado que tudo depende justamente de um estado de espírito que é individual ;-)...

    A evolução, por vezes, é retrocesso...

    Abraços =)

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  15. Por vezes sós por necessidade
    mas nunca isolados

    Abraço

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  16. Bem escrito e... inquietante... Obrigado! . E pode ler o meu mais recente poema em https://vieiracalado-poesia.blogspot.pt/2016/10/o-marmore.html Cumprimentos!

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  17. Não é fácil penetrar no texto nem absorver tudo o que transmite.
    E essas características tornam-no ainda mais interessante e intrigante.
    Aquele abraço, boa semana

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  18. Belíssimo texto !

    Há muito que o " esperava " , assim como há muito escuto as gargalhadas desses seres ,sem rosto , que observam o nosso " bracejar."

    Um beijo ,AC ,
    Maria

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  19. E cada vez estamos mais presentes numa realidade... que nos remete para uma virtualidade constante... não admira que estejamos cada vez mais sós... mas ligados ao mundo... um dos paradoxos dos tempos actuais...
    Extraordinário texto, que tão bem aborda esta temática... tão própria da involução dos tempos...
    A evolução abriu-nos para o mundo... a continuação da mesma evolução... parece isolar-nos do mundo... e de nós mesmos... se abdicar-mos da nossa individualidade, para agradar-mos ao mundo... que no virtual, tão facilmente nos aponta ou condena... à mínima coisa...
    Beijinho
    Ana

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  20. real e assustador, e cada vez mais estaremos isolados

    bem escrito, como sempre...

    beijinhos

    ::)

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  21. No nível filosófico profundo a nossa realidade não
    passa de uma "realidade virtual".

    Na questão solidão, se estabelecemos uma relação com
    a solidão como necessária, ela fica nossa aliada.
    Se estabelecemos uma briga com esta solidão, ela
    nos derruba.

    Um texto que aciona a reflexão na singularidade
    de cada leitor.
    Apreciei muito a leitura, AC!
    Beijo.

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  22. Um texto sábio e maravilhoso, AC!
    Bem-haja
    beijinhos

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  23. Desabamento - é a palavra chave que encontro para este teu texto com a profundidade e qualidade literária a que já estou habituada.
    Bjinho, AC :)

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  24. Confesso que, lendo as tuas linhas, eu fui levada a pensar, antes de chagar na metade da leitura, nos seres 'para lá da névoa', que riem, que se divertem, do quanto levamos a sério o virtual.
    AC, tu andas a acertar nas mosca, creio assim.

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